Este vírus retirou-nos a “liberdade” e colocou-nos num estado de medo coletivo nunca visto em gerações, no entanto, embora a um preço demasiadamente elevado, devolveu-nos algumas coisas que nos tínhamos esquecido, entre elas, algo que nos foi dado gratuitamente quando nascemos, o tempo.
Tempo que vendemos todos os dias e que nem sempre utilizámos da forma mais saudável ou construtiva aquele que sobra.
A um preço brutalmente elevado, este vírus, deu-nos tempo, obrigando-nos a parar tudo o que estávamos a fazer, tudo o que era “importante” e “inadiável”, travou-nos, com uma mão forte no peito, sob pena de nos levar os mais velhos, os mais fracos, aqueles de quem a sociedade muitas vezes se esquecia e remetia ao abandono.
Hoje lutamos principalmente por eles e por tudo aquilo que de basilar eles representam na nossa sociedade, os nosso pais, os nosso avós.
Este tempo “extra”, pode permitir que se reconfigure, a si ou a sua família, pode ser o tempo que precisava para se reinventar ou voltar a ser o que era, antes de ter colocado, a maior parte do seu tempo a venda. Dar mais valor ao que de facto importa, desvalorizando o resto, o resto que antes era o tudo e o tudo que agora é o resto.
Na minha atividade Clinica eu já tinha observado, que é só quando paramos, seja por uma doença grave, ou neste caso, por causa deste Vírus errático, que temos oportunidade para ver as pessoas que estão ao nosso lado, que olham por nós ou para nós.
É também quando paramos de correr que as feridas doem, que reparamos nelas e como elas nos estavam sistemicamente a fazer mal, este tempo “extra”, pode também, ser o seu tempo de curar essas feridas e eliminar da sua vida aquilo que as estava a causar, o tempo de mudança.
Este vírus pode unir-nos enquanto espécie
Numa altura em que damos mais valor aos contactos virtuais e a uma falsa sensação de proximidade e amizade, estranhamente, aparece algo que nos tira completamente a possibilidade de contacto real com as pessoas e nos obriga a dar valor e a refletir sobre essa ausência.
Afastando-nos dos nossos avós, pais, uns dos outros, colhendo-nos a possibilidade de nos tocarmos, de nós olharmos, olhos nos olhos e nos sentirmos. Como que uma espécie de “lição de moral”, este maldito vírus está a lembrar-nos que distância social sempre existiu, para alguns, os mais fracos, os mais pobres e os mais velhos da nossa sociedade e que agora existe para todos nós.
Aparece algo, que de certa forma, resgata os nossos filhos das instituições e sistemas de ensino, pensados para as massas e para os coletivos, que ignora e isola a Neuro e Psico-diversidade das criança e jovens de hoje. Que os ensina, mas que não os educa com valores sociais e princípios éticos fundamentais para a sua estrutura enquanto defensores de uma sociedade justa e com princípios.
Este vírus, de forma trágica, obrigou ao encerramento das escolas, mas devolveu os filhos aos pais, as famílias, obrigando-nos a olhar uns para os outros, por mais que os momentos em que nos cruzamos em casa na correria do dia a dia. Existem pais que, apesar de viverem na mesma casa, passam dias sem falar, trocar um olhar, são vultos e sombras dentro da mesma casa.
Vai também obrigar os casais a pensarem naquilo que dizem e de como fazem o outro sentir-se e sofrer, com o que dizem, que as palavras magoam e que agora, nada vai ficar estampado numa porta fechada ou cair no esquecimento de um dia cansativo de trabalho.
Vai obrigá-los olharem de perto um para o outro, de encontrarem pontes e de verem o quão profundamente afeta o que fazemos ou dizemos as pessoas que amamos ou amávamos, vamos poder ver as lágrimas uns dos outros, mas também as gargalhadas, é também tempo para se lembrarem de como tudo começou.
Por absurdo e a um preço elevado, este vírus pode unir-nos enquanto espécie, enquanto comunidade, enquanto família, obrigar-nos a esquecer as nossas diferenças mesquinhas e valores distorcidos, mostra-nos que a chave da nossa sobrevivência e sucesso enquanto espécie, não reside no excesso e abundância de alguns, mas na divisão desse excesso por todos, em estarmos juntos enquanto família e olharmos uns pelos outros enquanto comunidade.
Enquanto espécie, nós, já conseguimos coisas incríveis, já demostrámos em várias ocasiões que podemos ser insignificantes para o universo, mas que somos capazes de ser maiores que nos próprios, somos capazes de ser maiores que o próprio universo. Isto porque temos uma capacidade única, somos capazes de nos amar uns aos outros e isso tanto quanto sabemos, nem o universo consegue com toda a sua imensidão.
Este texto de opinião é da responsabilidade do psicólogo Alexandre Machado