Lágrimas na despedida: André Carvalho Ramos faz relato emotivo do que viveu na Ucrânia

André Carvalho Ramos esteve na guerra, em reportagem para a TVI e CNN Portugal, e não esquece o que viveu. Jornalista recorda casal que conheceu e lamenta não saber se vai voltar a vê-los.

02 Abr 2022 | 20:10
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André Carvalho Ramos esteve na guerra da Ucrânia, em reportagem para a TVI e a CNN Portugal, e, antes do regresso, falou com a TV 7 Dias sobre o que viveu em mais de duas semanas. O jornalista tem acompanhado “as diferentes crises migratórias e de refugiados na Europa desde 2015” e, com a situação dramática que se vive atualmente, não foi diferente.

“Ainda antes de se começar a falar desta fuga em massa de ucranianos do país, o primeiro pensamento que tive quando ouvi as sirenes de Kiev a tocar foi: ‘Pronto, vem aí uma das maiores crises de refugiados de sempre’”, contou André Carvalho Ramos à TV 7 Dias. Não estava enganado. Enviado especial da TVI e da CNN Portugal, o jornalista começou por fazer reportagens na Roménia e na Moldávia, mas passou também por um dos palcos da invasão russa: Odessa, cidade ucraniana que descreve como “uma barricada gigante”.

Antes de viajar, André Carvalho Ramos “estava à espera de encontrar histórias muito difíceis”. “São pessoas que têm a possibilidade de, em apenas duas ou três horas, agarrar naquilo que têm em casa e que seja mais importante, pôr numa mochila ou numa mala e rumar à fronteira”, lembrou, salientando “uma grande diferença desta em relação a outras crises migratórias”: “Estes refugiados são mulheres e crianças que vêm sozinhas. Não são famílias inteiras, não são homens… São mulheres que vêm sozinhas, a fazer viagens de três ou quatro dias, dentro de um carro, com crianças pequenas. E, muitas delas, com mochilas muito grandes, acabam por fazer os últimos 20 a 30 quilómetros a pé.”

O jornalista não se esquece de “uma imagem desoladora” que encontrou quando visitou abrigos de refugiados: “Havia colchões no chão e mulheres completamente desesperadas, não só por bens materiais terem ficado para trás, mas também porque os maridos, os pais das crianças, ficaram para trás.”

André Carvalho Ramos assume que teve medo

Dias depois, sempre acompanhado pelo repórter de imagem Ricardo Silva, André Carvalho Ramos conseguiu entrar em Odessa. Há medo? “Assumidamente medo”, respondeu logo, acrescentando: “É impossível uma pessoa consciente entrar num país em guerra e não ter medo. O truque é agarrarmo-nos ao nosso próprio otimismo e acreditar que não vai acontecer nada. E sempre com um plano de saída caso algo aconteça, para estarmos minimamente seguros – sendo que a segurança é relativa num país em guerra.”

No teatro das operações, garante que não viveu nenhum susto. Falou, antes, num caso “que impôs respeito”. “Aconteceu quando ouvimos os sistemas de defesa antiaéreo, o que significa que, possivelmente, mísseis russos iriam cair algures na cidade. Isso é o que mete mais respeito. Paramos, ficamos três ou quatro segundos a ouvir as sirenes e a seguir temos de tomar decisões. ‘O que fazemos?’ Esse respeito é intenso...”

Relação para a vida

Foi também em Odessa que o jornalista viveu um episódio que deixou sem reação. “Ainda a digerir” o que aconteceu, foi à TV 7 Dias que André Carvalho Ramos contou tudo. “Conhecemos Katja e Andrey, residentes em Odessa. Eles trabalhavam sobretudo na área da Cultura e, com a guerra, parou e fechou tudo. Então, queriam usar o tempo que tinham para ajudar no que fosse preciso e, neste caso, usaram-no para nos ajudarem. Ao longos dos dias em que lá estivemos, acabámos por ficar amigos”, contextualiza.

O momento em que ficou sem chão aconteceu no dia em que os enviados especiais da TVI e da CNN Portugal decidiram deixar a Ucrânia. “A certa altura, já estávamos cansados e sentimos que tínhamos cumprido a nossa missão em Odessa. Nesse dia, mandaram-nos recolher mais cedo. Havia recolher obrigatório às sete da tarde, mas mandaram-nos recolher às 17 horas, porque havia indicações dos serviços militares de que um ataque poderia acontecer. Ainda ficámos lá essa noite, mas despedimo-nos no dia a seguir”, revelou.

O momento de despedida de Katja foi “o mais difícil” para André Carvalho Ramos. “Ela foi sempre muito forte, desenrascada, teve sempre uma forma relativamente otimista de olhar para tudo isto e preparar-se para o pior, mas a acreditar sempre que o pior não iria acontecer. E, quando nos despedimos dela, a Katja desabou em lágrimas. Por um lado, porque nos íamos embora. Por outro, porque a nossa saída poderia significar também que algo poderia acontecer. A Katja, sendo mulher, e o marido, tendo 61 anos, poderiam fugir de Odessa, mas, como têm um filho de 22 anos, nunca o iriam deixar sozinho. Portanto, deliberadamente, quiseram ficar. Esse momento é o que me mais marca. Quando estamos no terreno, conhecemos as pessoas e gostamos das pessoas. E ver nos rosto delas o desespero que é ficar numa cidade que a qualquer momento pode ser atacada…”, disse, sem terminar a frase.

A emoção tomou conta dos dois. “Nós tentamos ser sempre racionais, mas toda a racionalidade tem um limite. E, quando nós vivemos 24 horas por dia sobre esta tensão, é difícil. Até esse momento, com uma gestão emocional difícil, fui aguentando. Mas, na despedida da Katja, não houve como gerir essas emoções. Portanto, foi um momento em que descarregámos os dois, nos abraçámos, nos despedimos, sem saber se algum dia vamos voltar a ver-nos, sem saber o que vai ser dela nos próximos dias, nas próximas semanas”, descreveu, rematando: “Desse momento dificilmente me vou esquecer. Ficará comigo para o resto da minha vida. Ainda não processei a carga emocional que foi, mas é certamente destas mais de duas semanas o momento que vou guardar.”

Desta jornada, André Carvalho Ramos guarda também as “quatro horas de sono” que, em média, conseguia tirar por noite e as poucas refeições que fez. “Pequeno-almoço, conseguia fazer de certeza. Em pouco mais de duas semanas, devo ter jantado para aí uma vez e almoçado duas ou três. Mas, como estamos no ritmo, nem sentimos. Agora, o cansaço acumula-se. Não dormimos noites completas, o sono é interrompido por sirenes e por sistemas de defesa antiaéreo. O cansaço vai-se acumulando e acumulando. Por isso é que, ao fim de 15 dias, tenho a sensação de que estive dois meses fora”, assumiu, admitindo ainda que “é completamente impossível” desligar-se daquela realidade por um segundo que seja. “Nunca. No caso das fronteiras, por exemplo, há sempre gente a chegar e estamos sempre a pensar: ‘A que quilómetro estará mais uma mulher com uma criança, a pé, até debaixo de dez graus negativos?’.”

No momento em que falou com a TV 7 Dias, André Carvalho Ramos estava na Moldávia, a postos para, no dia seguinte, viajar para a Roménia e, a partir de lá, voltar a Portugal. A exaustão não era clara. “Só quando parar é que vou sentir o cansaço todo. Para já, como existe aquela tensão de não sabermos o que vai acontecer, o cansaço não chega. Por exemplo, em Odessa, de manhã, eu sentia-me cheio de energia, mesmo tendo dormido pouco, e ao final do dia com receio do que pudesse acontecer. Provavelmente, vai cair-me tudo de uma vez quando chegar à minha casa”, equaciona.

A seguir, afirmou que não pensa em parar, falando até num possível regresso àquela região: “Acho que não consigo desligar-me desta realidade. Claro que vou chegar a Lisboa e dormir uma noite bem dormida, mas no dia a seguir, acho que vou querer continuar a trabalhar. É muito difícil desligar. Gostaria de voltar, em primeiro lugar, numa circunstância um pouco utópica: sem a cidade estar barricada e sem guerra. E gostaria que isso fosse mais cedo do que tarde, porque efetivamente desenvolvi relações muito próximas com pessoas que vivem em Odessa. Gostaria de vê-las bem e gostava de visitá-las sem aquele aparato militar. Não sendo possível e se jornalisticamente a Ucrânia continuar como está, gostaria de voltar.”

Texto: Dúlio Silva; Fotos: Gentilmente cedidas por André Carvalho Ramos e Reuters
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