Homem em corpo de mulher: Como as autoras criaram “A Generala”, a série-sensação da SIC

“A Generala”, que se estreia brevemente na SIC, é “sexualmente muito picante”, mas as autoras não se importam que esse seja o “gatilho”, se for essa a forma de chegar à mensagem que querem passar.

04 Jan 2021 | 8:00
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Ainda não se estreou no canal generalista da SIC, mas a série “A Generala”, em exibição na OPTO, plataforma de streaming da estação, tem recebido elogios um pouco por toda a parte. Esta série de época baseia-se em factos reais ocorridos há cerca de 50 anos, por uma mulher que assumiu a identidade do falecido irmão, levando a cabo uma série de burlas, que demoraram mais de 20 anos a serem descortinadas pela Polícia Judiciária.

Protagonizada por Carolina Carvalho e Soraia Chaves, que assumem a personagem principal Maria Luísa em momentos distintos da sua vida, a trama segue outros caminhos e fala de transexualidade e homossexualidade, numa época pouco dada a liberdades, como explicam Patrícia Muller e Vera Sacramento, as duas autoras, à TV 7 Dias.

A entrevista devia começar com uma pergunta, mas Patrícia antecipa-se e atira: “Vou começar por elogiar a Vera.” E prossegue. “Talvez pela personalidade dela, conseguiu trazer uma realidade, uma crueza, até nas próprias palavras, que eu, que tenho um feitio diferente do dela, não costumo usar. E isso foi uma ferramenta incrível para os atores trabalharem…”

As diferenças estendem-se às duas mulheres que dão vida à personagem principal, Maria Luísa: Soraia Chaves e Carolina Carvalho – a personagem quando era mais nova. Não sendo sequer parecidas fisicamente, ambas assumiram o papel de corpo e alma e até exigiram cortar o cabelo para a série.

As autoras assumem que a escolha de Soraia foi um risco, por ser uma mulher conotada como sex symbol. “A Soraia é o Crime do Padre Amaro, a Call Girl…”, diz Patrícia Muller, que completa: “Ela saiu exatamente de tudo o que nós associamos a ela, bonitona, sexy, feminina, e conseguiu passar-se para o outro lado.”

Por esse motivo, Vera analisa que a escolha da atriz para um papel de homem “foi uma grande malha. Foi uma escolha arriscada, mas a própria escolha da Carolina é arriscada. É pequenina, franzina e, no entanto, tem uma carga e uma força…”

 

Universo transexual abordado em “A Generala”

 

Além das burlas que a protagonista comete, Patrícia Muller e Vera Sacramento viram nesta série, nascida de um café entre as duas há dois anos, a oportunidade de lançarem um tema atual, que as duas querem ver normalizado: a transexualidade.

Na vida real, não há certezas sobre a homossexualidade da Generala, mas as autoras tiveram de preencher esse vazio, que nenhuma pesquisa lhes deu. “Ela cresce naquela ilha [N.R.: Madeira], cresce com uma educação católica opressiva e com o fantasma do irmão que morre em criança, e ela depois acaba por apropriar-se da identidade do irmão, por isso é que eles não conseguiam chegar a ela. Isso é real. Nós criámos muito em cima da história. Isto é inspirado, não é de todo fiel”, explica Vera, que, apesar de não ter certezas sobre as escolhas de Maria Luísa, tem convicções e ficou decidido explorá-las na série.

“Acho que foi uma opção de bandeira à causa trans e, sim, dizer sim, ela era trans, amou uma mulher sem ter consciência, mas sabia que era trans, e a relação entre a Generala e a Jacinta [N.R.: Margarida Marinho] é uma relação homossexual, não é de amiga”, completa Patrícia. Tudo isto apesar de, na vida real, terem descoberto que Maria Luísa “acabou os seus dias com a sobrinha dessa mulher”.

Patrícia Muller defende que “A Generala” não trata apenas de uma personagem, mas de transexualidade numa sociedade que continua “com um preconceito brutal em relação a tudo o que mete alguma diferença, principalmente o que é sexual”.

Ainda assim, Vera Sacramento defende que já há maior aceitação e que até os programas de day time já abordam o tema, que já foi considerado uma “aberração”, como explica. “No fundo, as pessoas têm medo daquilo que não conhecem. Se entenderes o sofrimento de uma criança, que começa a sentir a disforia de género [N.R.: identificação com o sexo oposto] com cinco, seis, sete anos, na escola, em que não quer brincar com os rapazes, porque tem maneirismos, porque não se identifica, é vítima de bullying… Há muitos pontos de contacto com os transexuais, sejam mulheres ou homens, que é a não aceitação na infância. Normalmente, há uma perceção em tenra idade que algo não bate e é sofrido em silêncio durante 20 anos.”

A autora fala de um exemplo recente, de um ator que fazia de pastor num anúncio a uma operadora de telemóveis – em que dizia “Estou sim? É para mim” –, e que se assumiu recentemente como transexual. “Ele casou-se, teve filhas. Ele disse que desde miúdo que sabia, e perguntaram-lhe sempre se ele não tinha falado com o pai ou com a mãe. E ele disse que tinha vergonha de desiludir. Por isso é que eu acho que é tão importante, para não continuarmos a dizer que isso é uma fricalhada”, atira Vera, que questiona ainda: “Há pessoas que não sabem que uma mudança implica 12, 13 cirurgias. Quem é que se submete a isso se não estiver em profundo sofrimento?”

 

Série é “sexualmente muito picante”

 

Inicialmente prevista para a SIC generalista, a série acabou por ser ponta-de-lança da plataforma OPTO, mas estreia brevemente no canal principal. E as duas antecipam a boa aceitação que vai ter… “até porque, numa cena muito rasteira da coisa, isto é sexualmente muito picante. Acho que vai despertar imensa curiosidade”, refere Muller.

E se o sucesso vier daí, Vera não vê que venha mal ao Mundo. “Nós não nos importamos que o gatilho seja esse. Se isso levar o público a ver e a perceber as mensagens que queremos transmitir a partir da série, não temos problema nenhum com isso. Faz parte”, explica.

A entrevista começou com um elogio e termina com outro, desta vez de Vera Sacramento, que, para além de enaltecer a força que receberam de José Silva Pedro, CEO da Coral, a produtora da série, se dirige à colega e amiga. “Eu sou muito picuinhas, detalhada, e uma das coisas que foi muito libertadora, e eu aprendi a trabalhar com a Patrícia, foi o tentar desconstruir, como argumentista, aquilo que eu acho que é lei. Já éramos amigas antes, mas acho que isto fortaleceu muito”, conclui.

 

Texto: Luís Correia (luis.correia@impala.pt); Fotos: Zito Colaço e Divulgação SIC

 

(artigo originalmente publicado na edição nº 1763 da TV 7 Dias)

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