De capacete em casa. Doença rara de António Cordeiro deixa mulher perto de esgotamento

O ator usa capacete e colete salva-vidas em casa para atenuar os efeitos dos tombos que uma doença rara, sem cura à vista, lhe provoca. A mulher já apresenta grandes sinais de esgotamento.

31 Dez 2019 | 16:10
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(artigo originalmente publicado na edição nº 1695 da TV 7 Dias, em setembro de 2019)

 

Quão aterrorizador é viver – ou sobreviver – preso no próprio corpo? António Cordeiro tem a resposta há três anos, altura em que o mundo ruiu. O seu e o da mulher, Helena Almeida, que assume, desde então, o papel de cuidadora 24 horas por dia. Paralisia Supranuclear Progressiva é o nome da doença rara, incurável e degenerativa, que abalou o ator, hoje com 60 anos, e que lhe foi diagnosticada no verão de 2017. Um ano depois, tornou-a pública à TV 7 Dias. E agora, como está António Cordeiro?

Há mais incertezas sobre o futuro do que o presente. Em entrevista à TV 7 Dias, a companheira de quase 25 anos do ator revela, manifestamente aliviada, que a doença, caracterizada por «altos e baixos», «não evoluiu substancialmente, embora existam alturas em que ele esteja pior».

Atualmente, e com a plena noção de que, «um dia, a doença há de evoluir», o que mais preocupa Helena são os desequilíbrios do marido. «O problema do António é que continua com quedas. Neste momento, a voz está um bocadinho melhor, mas os desequilíbrios estão piores», assume.

De facto, a instabilidade postural é uma das consequências mais observadas nesta patologia. Helena Almeida explica porquê numa linguagem coloquial: «Em casos como o do António, não há comunicação rápida entre o cérebro e a ação, como nós temos. A comunicação não está a processar-se. Quando a informação chega ao sítio onde deve chegar, já ele caiu.»

E continua, num tom marcado pelo positivismo e sem medo das palavras: «Todos os movimentos dele são muito lentos. Uma câmara lenta anda muito mais depressa do que o António.»

 

«O forno tem quatro vidros e ele partiu todos»

 

Para se ter noção, o ator «tem, em média, três ou quatro quedas por dia». Este número em nada se compara ao cenário que viveu na fase inicial da doença. «Há um ano e meio, ele caía 15 a 20 vezes por dia. Imagine o que é eu ter de levantar o António todas estas vezes – ele pesa 78 quilos e eu 60. Não preciso de ir ao ginásio», sorri, sem deixar antever uma ponta de sofrimento.

De lá para cá, o casal foi obrigado a arranjar um mecanismo para atenuar os efeitos das quedas em casa. «Há uns tempos, fui a uma loja olhar para as prateleiras e para as coisas. Pensava no que poderia salvaguardar o António. Comprei um capacete de ciclista, que lhe protege a cabeça e a nuca, e um colete salva-vidas, que, por ser uma coisa acolchoada, permite que a queda seja mais amortecida», descreve Helena.

«Se estiver sentado, tira o capacete e o colete. Quando se vai levantar, coloca-os», acrescenta, referindo que, desta forma, o ator escapa às «feridas, feridas e feridas» que chegou a sofrer, nomeadamente nas omoplatas, uma vez que as quedas são «em bloco». Os sustos já forçaram a pelo menos três assistências hospitalares. A mulher de António recorda-nos a que mais sobressalto gerou: «O nosso forno tem quatro vidros e ele partiu todos numa queda. Abriu a cabeça e teve de ir para o hospital.»

 

«Há dias em que ele me diz que está farto»

 

António Cordeiro voltou para casa, onde é passada uma considerável parte dos seus dias. Sem cura para tratar a Paralisia Supranuclear Progressiva, o ator está a ser medicado como se padecesse de Parkinson, de cuja família a sua patologia faz parte. Mas há um bom sinal: o prestigiado neurologista que consulta há dois anos, de quatro em quatro meses, «não lhe tem aumentado a medicação».

Aliada a este acompanhamento clínico, através do qual se perceciona «a evolução da doença», está a fisioterapia, fundamental para retardar a sua degeneração. «Quanto mais tempo ele estiver sem fazer fisioterapia, mais a doença avança», sublinha a mulher. Assim, o ator faz tratamentos em dois locais distintos, num dos quais as sessões são diárias e gratuitas.

«Entraram em contacto connosco e disseram-nos que gostariam que o António fosse consultado lá por um fisiatra. Ofereceram-nos a consulta. No final, disseram-me: ‘O António vai fazer fisioterapia aqui todos os dias’. Perguntei logo em quanto iam ficar os tratamentos. Responderam-me: ‘Não se preocupe que está tudo pago’», lembra, salientando «a generosidade fantástica» com que têm sido agraciados.

Também na outra clínica, com sessões de fisioterapia três vezes por semana, os têm ajudado nas custas da terapia. «Com o preço de uma sessão, pagamos três. Estão a ser muito generosos», diz-nos Helena. «São anjos-da-guarda que tenho. Estou superagradecida às pessoas. Nos tempos que correm, não se vê muito disto», reconhece.

Há ainda um terceiro fator de despesas. «Há muito dinheiro que tenho de despender para a medicação. Não é uma medicação barata. De 15 em 15 dias, devo gastar uma média de cerca de 150, 200 euros. É muito dinheiro, muito dinheiro», lamenta, revelando que a reforma de António Cordeiro «não é nada por aí além» e que o que tem valido ao casal são as verbas angariadas em ações de solidariedade para o ator e a almofada financeira que foram criando ao longo do casamento.

Mas o dinheiro «não vai durar para sempre», reconhece Helena, para a seguir completar que vivem «um dia de cada vez». «É tentar, com o dinheiro que se tem, poupar o mais que se pode», sintetiza.

Dois anos depois do diagnóstico, e sem qualquer tipo de independência, António Cordeiro continua a ter «dias complicados». «Eu preciso de fazer tudo. Não tenho ninguém que me ajude. Se tenho de sair por algum motivo, deixo-o em casa, mas ligo de cinco em cinco minutos porque tenho medo. Pode não acontecer nada, mas tenho medo. Tento sempre não me afastar de casa por mais de 30 minutos», diz-nos Helena.

«Há dias em que ele me diz que está farto disto e de depender sempre de mim. Ele depende 24 horas de mim! Já pouco falamos sobre a doença. Até porque não há nada para falar. Ele sabe o que tem, eu sei o que ele tem, sabemos aquilo com que contamos», atira, com o pragmatismo que imprimiu em todo o seu discurso.

 

«Não tenho vida. Estou muito cansada»

 

A par da generosidade de terceiros, António Cordeiro conta sobretudo com a mulher, de 56 anos, que não mede forças para tratar do grande amor da sua vida. «Perguntam-me como é que ele está, mas ninguém é capaz de me perguntar como é que eu me aguento», assume Helena Almeida.

E como se aguenta? «Eu sei lá. Não sei responder a isto. Às vezes fico parva como vou tirar forças a sítios que nem sei que tenho. Só digo isto: imagine o que é ter de levantar o António 15 a 20 vezes por dia. Uns dias desesperada, outros dias cansada. Todos os dias, quando acordo de manhã, só penso: ‘Quando é que é de noite, para poder descansar?’», desabafa.

Ao adotar o papel de cuidadora 24 horas por dia, Helena Almeida tem a noção de que passou a viver em função de alguém. «Não tenho vida própria. Não tenho vida», repete, recusando que tenha passado para segundo plano. Passou, isso sim, para «milésimo».

Até carta de condução a mulher do ator foi obrigada a ter. «Tenho a carta desde o ano passado. Vi-me na contingência de a tirar, senão não tinha como nos mexermos», explica, não negando que tenha alturas em que vai abaixo. «Guardo esses momentos para quando estou sozinha. Porque estaria aqui a falar consigo num pranto, lavada em lágrimas? Já chorei tudo o que tinha a chorar. Acho que já não tenho lágrimas para isso.»

As lágrimas secaram, mas o cansaço inerente ao papel de cuidadora acentua-se a cada dia que passa. «Acho que a doença é muito mais complicada para mim do que para ele. O António fecha-se no mundinho dele, como sempre se fechou, e vive um dia de cada vez», explica, assumindo que tem momentos em que o cansaço toma conta de si: «Já tenho dito ao António que estou farta. Não é farta do António, é da situação. Estou muito, muito, muito cansada. São quase três anos. É desgastante, muito cansativo e, às vezes, penso que já não aguento mais. Chego ao final do dia estourada.»

Questionada sobre se continua feliz ao lado de António Cordeiro, com quem tem uma relação de quase 25 anos, 18 dos quais casada, Helena Almeida escuda-se nos valores do matrimónio: «Diga-me uma coisa: se nos momentos bons estivemos juntos, é nos momentos maus que vou abandonar o barco? Somos os dois filhos únicos, não temos filhos. E agora, o que se faz? Há certos dias em que tenho vontade, não digo que não, mas… E depois, ele faz o quê? E eu faço o quê? Claro que não.»

«Até poder», é a tratar do ator que Helena ocupará os seus dias. E sem pensar no futuro. «Não sei se amanhã ainda vou conseguir, mas agora ainda vou conseguindo. Mas tenho a certeza de que vou deixar de conseguir um dia. Há de chegar uma altura em que não vou conseguir pegar no António, por exemplo… A idade não perdoa. Quando esse momento chegar, logo se vê», desvaloriza.

 

«Tirámos dividendos do aproveitamento que alguns deram..»

 

Pouco tempo depois de a TV 7 Dias ter noticiado a doença contra a qual António Cordeiro luta, o ator foi convidado por Daniel Oliveira para o programa Alta Definição. «Não vi a entrevista. Até hoje. Não queria que ele fosse, porque não queria que ele se expusesse. Queria que ele desaparecesse em bom. O António disse-me logo que não, porque as pessoas mereciam que ele dissesse porque é que ia desaparecer»», revela Helena Almeida, salientando estar «muito agradecida» ao rosto do programa da SIC, por esta conversa «ter espoletado todas as ações de solidariedade» que se seguiram.

De um momento para o outro, o caso deixou de ser falado, algo que não surpreendeu o casal. «Já estávamos à espera. É normal. Tínhamos perfeita noção de que isso ia acontecer.» Confrontada se houve, em alguns casos, um aproveitamento mediático da doença, a mulher do ator anui e aborda a questão com objetividade.

«Costumo dizer que uma mão lava à outra. Ok, aproveitaram-se do António, mas nós também nos aproveitámos da popularidade que deram ao caso. Tirámos dividendos do aproveitamento que alguns deram à doença. De tal forma que estou agradecida a todos. Só tenho mesmo a agradecer. Foi dar e receber», diz, com naturalidade.

 

Sem convites para voltar ao trabalho

 

Na impossibilidade de prosseguir com a carreira de mais de três décadas na representação, António Cordeiro chegou a equacionar a hipótese de se manter no ativo atrás das câmaras, enquanto diretor de atores. Porém, os convites nunca chegaram.

«Vamos ser honestos e falar preto no branco: nunca o iriam chamar. Uma pessoa que trabalha com o corpo e a voz, não tem hipóteses nenhumas quando tem problemas de dicção. Nunca houve da parte de ninguém qualquer contacto. E compreensivelmente», desdramatiza a mulher.

O último projeto de Cordeiro foi a novela Espelho d’Água, emitida pela SIC até abril do ano passado. O amor pela arte mantém-se intacto. «Uma vez ator, para sempre ator. É o amor da vida dele. Lembro que, quando namorávamos há pouco tempo, ele disse uma coisa que me ficou gravada até hoje: ‘Não troco nem deixo a minha profissão por mulher nenhuma’», recorda, entre risos.

 

Texto: Dúlio Silva; Fotografias: Impala

 

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