Autora de Golpe de Sorte: «O público tinha saudades destes atores»

Vera Sacramento, a autora da série da SIC Golpe de Sorte diz que o êxito da trama passa pela opção de ter um elenco mais maduro.

14 Jul 2019 | 17:55
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A argumentista Vera Sacramento defende que os atores mais velhos têm lugar na ficção e as audiências de Golpe de Sorte dão-lhe razão. A escritora dos padres bonitos ainda tem tempo para trocar impressões com a concorrência e espera correr uma maratona em novembro.

 

TV 7 Dias – Foi só à Maria do Céu que saiu o Euromilhões ou a si também, enquanto autora?

Vera Sacramento – Acho que sim, que estamos todos a sentir este projeto como um presente. Entregámos muito e continuamos a entregar, porque o projeto continua ativo. Portanto, sim. Acho que não se trata de sorte. Não é propriamente um golpe de sorte, porque tem muito trabalho envolvido e muita entrega, mas estamos muito felizes com os resultados e com o feedback direto do público.

Esta série captou a atenção dos telespectadores. O que traz ela de diferente? Conteúdo, atores, conjugação de fatores…

É a simplicidade. A história é simples, é de sonho, de mostrar como a vida pode mudar completamente de um dia para o outro, e em termos de ingredientes, começando pela escrita, nós combinamos e fazemos um esforço para combinar linhas mais dramáticas, mas ter sempre um toque de comédia. Há muitas personagens, que estão em dois campos distintos, que se cruzam. Até a própria personagem Céu. Temos cenas dramáticas, mas também hilariantes. Isso é uma das coisas que atraem e que marcam pela diferença. A estética da série é muito diferenciadora. Temos um elenco belíssimo e muito diversificado. Temos um elenco sénior muito marcante, com pessoas com muita experiência, que ainda tinham muito para dar, e algumas estavam paradas. O público tinha saudades destes atores e destas atrizes. E isso também é fundamental. Também fugimos deliberadamente ao ambiente urbano. Temos feito um universo mais rural.

Como nasce o Golpe de Sorte?

Começa com uma reunião com o diretor de programas, com o Daniel Oliveira e o Daniel Cruzeiro, onde estava eu e o diretor da Coral Europa, o José Silva Pedro. Foi uma reunião com poucas pessoas, onde me foi dado o guideline de criar uma história à volta de uma mulher que ganha um grande prémio, e foi a partir daqui que eu construí a ruralidade, as personagens todas. Depois foi montar o puzzle e ver se aquilo fazia sentido e agradava à estação.

E a escolha das personagens passa pela Vera…

Foi tudo em conjunto. O facto de termos sempre trabalhado em equipa e de a direção de programas ter estado sempre connosco, todos os dias, sempre envolvida, com tudo… há um acompanhamento muito próximo que eu nunca tinha experienciado, confesso. Isso também é a chave do sucesso. São muitos olhos a ver e depois retiramos o melhor desse brainstorming, que fazemos conjuntamente. Foi no início e tem vindo a ser sempre.

Trabalha muito sozinha ou tem uma equipa?

Somos nove pessoas.

Quanto tempo gasta por dia a escrever?

(Risos) Dorme-se muito pouco… é só o que lhe consigo dizer. É um trabalho de paixão, temos muita atenção na revisão, na construção de cenas… Os processos são repassados muitas vezes. Usamos isso para investir em qualidade. Dorme-se pouco.

Acompanha a série?

Sempre. Eu e todos. Temos um grupo de Whatsapp, os guionistas. Estamos a visionar e a trocar ideias porque uma coisa é o que nós escrevemos, no ar é diferente e, muitas vezes, o produto final supera as expectativas.

E mudar alguma coisa, às vezes apetece?

A mim? Sim, já aconteceu.

É muito crítica com o seu trabalho?

Altamente crítica.

As pessoas que trabalham consigo são a sua equipa de sempre?

A maioria da equipa, eu já tinha trabalhado. A Sara Rodi é o meu braço-direito. Depois tenho a Sara Sampaio Simões, a Elisabete Moreira, o Sebastião Salgado e o Roberto Pereira, que já tinham trabalhado comigo. Alguns destes elementos, nós já tínhamos trabalhado juntos, desde miúdos, na Casa da Criação, portanto, já tínhamos uma ligação profissional e emocional de outros tempos. A Susana Tavares entrou depois, a Ana Vasques já tinha trabalhado com ela, o Ricardo Silveirinha… Já tinha experiência de trabalho com quase toda a equipa.

As coisas mudam muito para a segunda temporada?

Há um corte muito grande. Há um mexer das águas.

Li algures que a Céu vai abdicar da fortuna…

Não é bem verdade, mas vai ter ali umas oscilações emocionais com muito impacto. Há acontecimentos marcantes para todos os núcleos. Não são só para a protagonista. Eu vejo muito o elenco como uma coisa orgânica. Não vejo ali uma primeira figura, uma segunda, os de quarto e quinto plano. Vale pelo conjunto.

Esta série vai buscar pessoas que raramente são chamadas à primeira linha da ficção.

E resulta. Nós não temos só mulheres lindíssimas de 20 ou de 30 anos, que possam protagonizar uma história. A Maria João Abreu é uma mulher lindíssima, madura e com um talento incrível. Eu acho que este é o projeto da vida dela. Mesmo. As pessoas envelhecem. Porque é que nós não havemos de refletir e colocar pessoas de diferentes idades num elenco? Quanto mais reais nós formos, mais possibilidade temos de criar empatia com o público. Foi também por aí que eu quis ir e o caminho que eu quis traçar. Felizmente, fui muito apoiada pela direção de programas e pela produtora.

As pessoas veem estes atores mais experientes… acha que isso pode mostrar que a televisão não se está a renovar?

Tenho muitas pessoas conhecidas, e conhecidas de amigos meus, que não consomem televisão generalista há muito tempo, e que estão agarradas à série. Estamos a falar de pessoas com 25/30 anos, consumidoras de Netflix, portanto consumidoras de outros produtos que já estavam bastante afastados da televisão generalista. Ou pessoas mais velhas, a partir dos 55 anos, de classes mais altas em alguns casos, mais exigentes – sem querer discriminar –, que consomem outro tipo de produtos e que os conseguimos agarrar.

Tem alguma personagem a que se tenha afeiçoado mais?

Várias, mas é uma pergunta muito difícil.

Dá um pouco de si na história?

Sim. Eu tenho muitas memórias de infância rurais. A família do lado da minha mãe é de uma aldeia próxima de Viseu e todo aquele universo me diz muito. É muito fácil construir as personagens porque aquelas pessoas existem. Outra preocupação que esta equipa de escrita tem é a de não criar bonecos, ou seja, não caricaturamos, mesmo quando as personagens são mais histriónicas, como o caso do Horácio Toledo, do Vítor Norte. Depois temos o outro lado de humanização da personagem, que a torna mais terra-a-terra, embora existam pessoas assim.

 

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A euromilionária é inspirada na que existe na realidade?

Não. Vou buscar o facto de ela ganhar o Euromilhões e o de a senhora não ser de um centro urbano. Não há mais nenhum ponto de contacto, que eu saiba, do que eu li da história dela. Tive esse cuidado para não me colar.

Não pondera um encontro entre as duas?

Era giro, é uma boa ideia (risos).

Disse que este era o papel da vida da Maria João Abreu. Também é a sua obra?

Eu gostei muito de fazer O Crime do Padre Amaro, que também tinha o Jorge Corrula e também tinha padres, mas só lhe posso dizer que me sinto feliz e muito realizada, por ver os atores, o diretor da produtora, que investiu muito nisto, e a direção de programas, felizes. Acima de tudo, por ver o público a aderir desta maneira. É a maior barra energética que se pode ter. Eventualmente, pode ser o projeto da minha vida.

O Daniel Oliveira ‘mete-se’ muito na escrita?

Acompanha muito, dá ótimas ideias, tem uma opinião muito firme e eu também. E o Daniel Cruzeiro também. Muitas vezes fazemos brainstormings, para daí chegarmos a um consenso.

E quando há empate técnico, vence quem contrata ou quem escreve?

Já aconteceram as duas coisas (risos).

Já tem algum projeto futuro?

Sim, mas não posso falar ainda sobre isso.

O Golpe de Sorte vai até onde?

Nós estamos a ir por temporadas. Os resultados é que vão ditar a continuidade. Foi precisamente por isso que se fez em temporadas, porque não fazíamos a menor ideia de como as coisas iam resultar. Julgo que faz parte da estratégia. As pessoas já têm mais dificuldade quando sabem, à partida, que ele é de longa duração. O dar frescura e não obrigar as pessoas a estarem tanto tempo agarradas ao mesmo produto, eu acho que também pode ter explicado o facto de termos ido buscar outros públicos. Eu lembro-me que Anjo Selvagem teve quatrocentos e tal episódios, um disparate.

E com um elenco reduzido…

O nosso também não é muito grande.

O público percebe a diferença entre série e novela?

Acho que sim, quanto mais não seja, por serem feitos estes cortes na história e, quando voltamos, haver tanta novidade. Isso não é tão claro quando temos linhas de continuidade direta, em que não há passagens de tempo grandes. Tecnicamente, são praticamente dias de ação seguidos e na série há corte, há caminhos que mudam nas personagens. Acho que o público perceciona isso.

Esse recomeçar dá mais trabalho?

Tecnicamente, sim. Isto dá-nos muito prazer. O esforço e o empenho nunca nos retirou prazer. E já não vai acontecer, porque temos este feedback positivo, que é o maior alento. Mas é mais difícil. Tem de ser pensado de outra forma.

Esta série junta várias caras desaparecidas e também ex-casais da vida real. Coincidência?

Sim. Não dissemos ‘vamos juntar estes’, porque foram marido e mulher. Não foi intencional. Nós equacionámos quem serviria melhor cada um dos papéis e claramente a personagem da Maria João Abreu era a cara dela e o José também tem muito a ver com o perfil dele. É uma das personagens que vai sofrendo mais mutações. Nós vamos descobrindo a personagem dele. O José Luís vai-se descobrindo, não só pelo amor que ele tem à Céu, mas pela relação atribulada que tem com a mãe. A Preciosa é intensa em tudo.

E ainda há aquele contraste da alegria do prémio da Céu e depois o filho desaparecido.

Uma das coisas que a Maria do Céu já verbalizou é que o dinheiro não traz felicidade. Ela era uma vendedora de fruta, ainda tem isso nela, tem saudades do mercado, do cheiro a fruta. Ela em casa tem a Graciete, mas faz questão de ser ela a fazer a cama dela. Portanto, mudou, mas não a mudou por dentro. Mudou coisas na vida dela. Ela comprou o palacete e três carros no mesmo dia. Há ali demonstrações daquilo que o dinheiro pode comprar, mas internamente…

Não perdeu as raízes?

Não, não, muito pelo contrário.

É como a Cristina Ferreira, que ainda sabe o lugar das estacas…

Exatamente. É uma mulher orgulhosa das suas raízes. Até ao fim.

Fala com os atores?

Sim.

Sempre foi assim ou uma série exige mais proximidade?

Não. Eu acho que é igual. Uma coisa é o que nós entregamos na escrita, mas depois… A Maria João Abreu tem uma frase muito engraçada que é: «Tu criaste, mas eu dei o corpo e dou a alma.» Os atores dão um contributo gigante para que a personagem resulte. É muito importante que eles possam consultar a autora. Essa proximidade é muito importante e os atores são muito respeitadores da autoria.

Não tentam mudar nada?

Nunca me aconteceu neste projeto.

Mas é recetiva a sugestões?

Claro, porque eles é que estão a viver e têm o cuidado de estudar todo o percurso. Os atores vão recebendo os guiões. Quando surge alguma coisa que pode suscitar dúvidas, só demonstra empenho e profissionalismo tentarem perceber. Uma das atrizes com quem eu tenho falado bastante é com a Oceana Basílio, que tem um papel bastante complicado. Ela é cega e fez um trabalho de composição fantástico. Ela fez um trabalho de campo com invisuais durante muito tempo. É muito credível como invisual e é muito interessada. Falamos muitas vezes. O coordenador de projeto, o Carlos Dante, é outra pessoa com quem eu falo muito. Costumo dizer que ele é o grilo do Pinóquio, porque quando tenho dúvidas falo com ele. Ele tem uma sensibilidade para a história incrível. É das pessoas que está mais dentro da história.

A Isabela Valadeiro foi uma boa contratação?

Brutal. Sim, incrível mesmo. Eu adoro a personagem e quando escrevemos a Telma ela já era excessiva, colorida. Mas aquilo que a Isabela trouxe de acrescento, de riqueza e da alegria dela, da maneira como ela anda, é tudo criação da atriz. Está a fazer um excelente trabalho. Da geração dela acho que vai ser marcante. E já está a ser.

Como é que é a autora do Golpe de Sorte?

Adoro trabalhar e estou completamente comprometida. Tenho família, tenho marido, tenho filhos e tenho um hobby que adoro e que, neste momento, está completamente parado, que é a corrida. Tenho uma maratona em novembro e não sei como é que a vou fazer. Não tenho tempo para treinar. Mas não digo isto para me queixar, porque eu estou tão apaixonada. Quando estamos assim não temos nem queremos ter tempo para mais nada. A Vera sempre deu muita prioridade ao trabalho. Estamos todos a dar tudo.

Entre O Crime do Padre Amaro e o Golpe aumentou a pressão das audiências. A exigência da escrita também é maior?

Na altura já havia. Na altura foi muito exigente o processo e fui altamente criticada pelos puristas do Eça. Pôr o Eça num bairro social, com personagens a assumir a homossexualidade e tudo mais, aquilo foi considerado por alguns um crime… o padre Amaro. Mas fomos durante muitos anos o filme mais visto. Só fomos destronados pelo Pátio das Cantigas, do Leonel Vieira, há pouco tempo. Foi uma loucura os prazos em que a série foi feita. Lembro-me do casting da Soraia Chaves, do que ela tinha vestido. Foi superintenso e foi a primeira vez que trabalhei com o Jorge Corrula, com quem eu adoro trabalhar e que já esteve em vários projetos meus. Não acho que o nível agora seja maior, até porque quem define a exigência em primeira instância sou eu. E sou muito exigente.

Não há padres convencionais consigo. A personagem do Diogo Amaral segue esse caminho…

(Risos) Eu tive educação católica, portanto isto também tem muito da minha visão da Igreja e da forma como eu gostava que a Igreja fosse encarada.

De uma forma mais aberta?

Sim. Em O Crime do Padre Amaro, até porque o original o exige, praticamente não há nada de positivo. Tirando a personagem interpretada pelo Jorge, que é um jovem padre. Mas, mesmo assim, também não fica com a imagem imaculada, porque cai em tentação. Mas há ali uma série de mensagens subliminares que são mais negras, e aqui não. O padre Aníbal é progressista, aterra numa vila onde há o grupo das três pastorinhas, ultraconservadoras, onde tudo lhes faz confusão naquele padre: a mensagem, o facto de ser um homem bonito e suscitar o interesse e a curiosidade das mulheres. Estão ali em permanente braço-de-ferro.

Disse que tem memórias do interior, educação católica… Alvorinha é a fotografia disso tudo?

Também. Consegui colocar muitas das minhas memórias em Alvorinha.

Uma grande percentagem dos euromilionários perde a fortuna. A Céu está de que lado?

Ainda não tenho esta resposta para lhe dar, mas vamos tê-la. As coisas não estão fechadas, mas vai ser um grande carrossel. É claro que estão ali duas pessoas para a roubar. O Caio/Jorge e a Sílvia/Miriam, os burlões, foram para Alvorinha e construíram aquele plano todo para a enredar e se aproximarem dela. Há ali um plano montado para lhe sacar a fortuna. Se vão ser bem-sucedidos, ainda vamos ver.

É atenta à concorrência?

Muito. Aliás, a pessoa que está a fazer a adaptação do Amar Depois de Amar é uma das minhas melhores amigas. Vejo sempre os episódios dela e falamos com frequência. É muito interessante. Estamos a concorrer uma contra a outra e ela faz as críticas aos meus episódios e eu faço aos dela. É muito engraçado.

Se não fossem produtos diferentes, não poderia haver essa interação?

A Helena Amaral é uma pessoa que eu estimo muito e admiro profissionalmente. Acho que existiria sempre, mesmo que os produtos tivessem características semelhantes ou tivessem uma colagem maior. Mas são completamente diferentes e ainda bem para todos. É interessante podermos analisar. Todos os dias vejo religiosamente o meu e muitas vezes também comento o da Helena e também falamos sobre os nossos produtos. Ficamos muito contentes com a vitória uma da outra. A amizade vai para além da concorrência.

Quem são as suas referências?

Um dos primeiros projetos que eu fiz, de ficção, foi a Ganância. Na altura com o Francisco Nicholson e com a Sara Rodi, que também está comigo neste projeto. Foi ela que me convidou, na altura, para integrar. O Francisco foi o meu grande mestre e muito daquilo que nós trabalhamos em comédia, e que também se espelha aqui no Golpe de Sorte, muito do que eu e a Sara aprendemos, foi com ele, um exímio guionista. E depois com a Maria João Mira, autora de Prisioneira, que foi minha coordenadora quando estive na Casa da Criação. Foram os meus mestres.

 

Texto: Luís Correia | Fotografias: Nuno Moreira e SIC

 

(entrevista originalmente publicada na edição nº 1686 da TV 7 Dias)

 

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